Trabalhe com o que você ama...
- Mariane Souza
- 21 de jan.
- 6 min de leitura
... e encontre outra coisa para amar imediatamente

Tenho ouvido muito de pessoas, dentro e fora da terapia, sobre uma crescente insatisfação com o próprio trabalho. Alguns dizem que a coisa perdeu o gosto, o brilho, a graça; outros se descrevem infelizes com a escolha em si, pela quebra de expectativa do que era o trabalha ou pela (pouca) renda produzida. Todo mundo que se descreve insatisfeito também conta que está quase a ponto de jogar tudo para o alto e fazer alguma outra coisa. Mas não qualquer outra coisa.
Essa outra coisa parece ir em duas direções: a primeira é uma coisa com propósito; a segunda é uma coisa que seja rentável, flexível, onde não precise receber ordens.
Excluindo multimilionários herdeiros de fortunas que, se enfileirássemos as notas, dariam a volta ao mundo várias vezes, em algum nível somos empregados, às vezes de nós mesmos (salve autônomos), me parece uma condição meio inescapável.
Agora, trabalhar com uma coisa que tenha propósito tem pelo menos um grande culpado (e se você souber quem foi, ponha o pé para ele tropeçar, por favor), o primeiro cara que disse que “se você trabalha com o que ama, nunca mais precisará trabalhar na vida”. Ele mentiu, era mentira, mas já chego lá.
Antes da mentira de trabalhar com o que se ama, para não ter que trabalhar, contaram outra mentira, de que bastava você se esforçar muito e estudar bastante, que seria possível conquistar qualquer coisa. O cruel dessa mentira em particular é que a maioria das coisas realmente demanda esforço e alguma dedicação em aprender, mas só esses dois fatores não bastam e nem todo mundo conta com condições em que estes dois fatores em específico estão disponíveis e/ou farão a maior diferença.
Mas muita gente acreditou (eu mesma inclusive) que era isso mesmo e começou a vida profissional dedicando grandes baldes de tempo e energia (e dinheiro) aprendendo um trabalho - faculdade, cursos, especializações, formações etc. Depois disso começou o trabalho propriamente dito e aqui nos deparamos com uma encruzilhada onde, de um lado estão as pessoas que conseguiram colher alguns frutos dessa dedicação e do outro lado estão pessoas que não colheram tantos frutos, apesar da sua dedicação.
Além do aspecto cruel de não saber se sua dedicação será recompensada ou não, essa (mentira) promessa da recompensa pelo esforço também coloca essa recompensa como um resultado direto do esforço feito, causa e consequência, então quando o “sucesso” não vem, só pode ser porque não houve esforço o suficiente, precisa se esforçar mais, certo? Errado, infelizmente errado.
Mas veja bem, as pessoas que contam estarem insatisfeitas com seu trabalho vem dos dois lados, o que é contraditório, já que um dos lados seguiu as regras do jogo e não saiu de mãos abanando. E sabe por que eles também estão insatisfeitos? Porque juntaram as duas mentiras em uma só: se você se esforçar e estudar muito para trabalhar com o que ama, não vai precisar trabalhar um dia na vida. Um megazord de mentiras!
Trabalhar com o que ama ≠ amar trabalhar indiscriminadamente
Trabalho é trabalho, mesmo quando você faz uma coisa que gosta muito. Qualquer trabalho tem demandas, cansaço, rotina, responsabilidade, prazos… Eu entendo a desilusão de quem confiou em promessas vazias, mas quando essas coisas todas bateram a porta, de repente ter uma renda, cargo, benefícios, se tornaram conquistas de menor valor, o trabalho passou a precisar de um propósito e que você amasse fazê-lo. O trabalho precisava ser um sonho de vida, porque assim você não teria que trabalhar, ou melhor dizendo, não teria que se sentir mal e sofrer com as partes chatas e difíceis do trabalho. (Meentchhiiiiras. SAÚDE!)
Essa insatisfação meio contagiosa deriva exatamente dessa mentira promessa de que você aí, um mero mortal como eu, pode viver uma realidade diferente, promissora, frutífera, desde que você faça diferente do restante do rebanho, pare de trabalhar por dinheiro e decida trabalhar com o que ama.
Seu trabalho não paga o suficiente para uma vida confortável, você trabalha demais e em condições “menos que ideais” (ruins)? Invista nos seus sonhos, nada pode ser melhor.
Seu trabalho paga o suficiente para uma vida confortável, mas você não vê felicidade no que faz? Pare de se sabotar e encontre um propósito.
Agora vou te contar qual pegadinha irônica se esconde no meio dessa salada de (mentiras) promessas : quando se decide trabalhar com o que se ama, não dá para excluir as partes difíceis e inconvenientes de ter que fazer uma coisa para sobreviver. O resultado tem sido as pessoas esquecerem de encontrar alguma outra coisa para amar, que não seja trabalho.
Quando você trabalha com o que ama e entende que essa é a salvação definitiva da lavoura, de repente tudo na sua vida se resume a trabalho e quando você se cansa ou se frustra, tem dificuldade de encontrar alívio e satisfação em alguma outra atividade. Como cereja no topo desse sundae de morangos mofados, você se sente culpado em fazer o que gosta sem comercializar ou nem pensa em buscar outras coisas para se interessar, afinal, você ama o que faz, certo? Não tem razão para sofrer…
Vamos ser sinceros aqui, a rotina de trabalhar cansa (rotina normal, trabalhar cansa, pode admitir, eu não vou contar pra ninguém) de uma maneira ou de outra, é importante ter uma válvula de escape criativa ou prazerosa. Isso vale para qualquer tipo de trabalho.
Aquele meme de viver do que natureza dá para gente quando se tem um trabalho mais quadradinho, é vivido no vice-versa. Se a pessoa trabalha num escritório, por exemplo, ela sonha em sair e abrir a própria confeitaria porque faz bolos para a família toda, que diz que tem mão boa para doces. Se ela trabalha com arte e ajuda os amigos a montar sites para eventos, flerta com a ideia de aprender a programar e uma vaga CLT na área.
Porém, contudo, no entanto, se a confeitaria engrena, o bolo do fim de semana ou para o aniversário de um sobrinho vira uma fonte de grande irritação, assim como o pedido de ajuda de um amigo para mexer no site da festa de confraternização do fim de ano. Quando a pessoa se depara com um tempo livre, não sabe mais como preencher e vive um outro momento de crise, talvez mais silenciosa, afinal está tudo bem, ela está vivendo o sonho, certo?
O que acontece quando sua paixão não se prova tão recompensadora ou lucrativa?
Uma cena que tem se tornado comum, é a da pessoa que trabalha com aquilo que ela amava fazer, mas não tem conseguido colher frutos financeiros do próprio esforço ou não tanto quanto gostaria.
Um dos efeitos deste cenário é o ressentimento da coisa. Você amava fazer e agora sofre de pensar a respeito porque os louros prometidos viraram fumaça e trabalhar com o que se ama se tornou trabalhar dobrado num negócio que passou a te dar ranço.
Uma variação desse efeito é a desautorização para fazer o que gosta PORQUE gosta de fazer. Se é preciso fazer esforços dobrados para produzir o mínimo, isso significa que o esforço nunca acaba e o momento de descanso depois do trabalho nunca chega. Essa aqui é a mentira que a maioria de nós ouviu quando era criança: só pode brincar ou descansar depois de cumprir as obrigações.
No fim das contas…
Por mais que se ame fazer uma coisa, todo mundo experimenta dias sem energia, desmotivação, sem inspiração e fazer uma coisa que amamos como fonte de renda não vai nos livrar disso.
Todas essas promessas vazias de que basta fazer isso para aquilo acontecer reduzem o caos que rege nossas vidas a uma regra simplista demais. Existe uma porção significativa de acaso ou coincidência nos acontecimentos que chamamos de sorte. O velho ser a pessoas certa, na hora certa, no lugar certo. O único pedaço com o qual eu concordo parcialmente é que é importante estar preparado para quando as oportunidades se apresentarem. O pedaço desse pedaço que eu discordo é que nem todo mundo tem a possibilidade de se preparar com antecedência.
No fim das contas o mais saudável não é amar o trabalho e sim ter trabalho suficiente, numa coisa que não promova mais sofrimento do que o estritamente necessário (trabalhar num dia de calor de 42 graus na sombra, ninguém gosta… talvez instrutores de natação…) e ter tempo e recurso o suficiente para amar outras coisas, compartilhar essas coisas com pessoas queridas, que se interessam por aquilo também.
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