O mundo não vai acabar
- Mariane Souza
- 18 de out. de 2024
- 5 min de leitura
A humanidade é um capítulo barulhento e desorganizado
O mundo já existia mundo antes da humanidade começar a rastejar para fora da água. A estimativa é de que o planeta tenha se formado por volta de 4,5 bilhões de anos atrás ( https://jornal.usp.br/radio-usp/atualidades-steiner_07-08-como-os-cientistas-sabem-a-idade-da-terra/ ). O ser humano como conhecemos hoje apareceu por volta de 300.000/200.000 anos atrás ( https://www.ufrgs.br/museu/a-dispersao-dos-seres-humanos-homo-sapiens/ ) e se espalhou pelo planeta por volta de 100.000 anos atrás ( https://super.abril.com.br/coluna/oraculo/quem-ocupou-o-mundo-o-homo-sapiens-ou-outra-especie ).
Para comparação, 4,5 bilhões de anos por extenso é 4.500.000.000.
4.500.000.000 anos
0.000.300.000 anos
0.000.100.000 anos (nós estamos no fim dessa fila)
O mundo já existia mundo antes de nós e vai continuar existindo quando o último ser humano for embora depois de apagar a luz. Mas parece que a gente superestima nossa importância.
O mundo vai ficar bem
Podemos tomar algumas mudanças observadas durante os primeiros meses da quarentena pela COVID-19, como exemplos do que pode acontecer: 1. “Pandemia e meio ambiente: impactos momentâneos ou nova normalidade” - https://www2.ufjf.br/noticias/2020/04/24/pandemia-e-meio-ambiente-impactos-momentaneos-ou-nova-normalidade/; 2. “Devido à quarentena, tartaruga gigante volta a aparecer em praias” - https://veja.abril.com.br/mundo/devido-a-quarentena-tartaruga-gigante-volta-a-aparecer-em-praias; e 3. “Quarentena: com população em casa, animais aparecem com mais frequência pela cidade” - https://oglobo.globo.com/rio/quarentena-com-populacao-em-casa-animais-aparecem-com-mais-frequencia-pela-cidade-24436472.
É possível imaginar que depois do fim da nossa festa, o mundo vai ser reorganizar e outras formas de vida vão ocupar os espaços que os seres humanos ocuparam. Talvez rios canalizados voltem a encher e correr no lugar das avenidas, animais e plantas acompanhando os leitos e se expandindo, vivendo as mudanças das estações e fenômenos naturais, novos e antigos, possam acontecer sem ninguém por perto para pensar como aquilo pode ser rentável ou "inspirar produtividade”.
Quem acaba é a gente
Sim, nós é que vamos acabar. E nem é necessariamente uma perspectiva pessimista, apenas uma noção inevitável. A vida humana é consideravelmente frágil e sabemos que o Sol (um dos primeiros requisitos para manutenção do que entendemos como vida) eventualmente também chegará ao final da sua existência. É provável que a vida na terra já tenha se extinguido muito antes.
Parece triste, mas é apenas normal. Termos nos tornado animais verbais e conscientes dos ciclos naturais não fez com que fôssemos bons em pensar sobre eles e muito menos a viver a partir da existência deles. Aves que migram numa direção quando chega a hora, tartarugas que retornam para a praia onde nasceram ou peixes que nadam correnteza acima na época de reprodução não devem passar muito tempo contemplando a chegada da hora de mudar, questionando se seus feitos até então justificam sua existência ou se sentindo culpados sobre o que “deveriam” de ter feito de diferente (talvez, é possível que as tartarugas marinhas nadem por aí carregando arrependimentos das águas marinhas que não comeram ou a correnteza que não seguiram, só acho que não fizemos por onde elas gostarem dos humanos o suficiente para compartilhar a respeito, então jamais saberemos).
Quem precisa de ajuda é a gente, para aquilo que faz falta hoje.
Nosso funcionamento e a organização da vida humana tem se tornado cada vez mais contraditório. Ao mesmo tempo que a tecnologia para produção de alimentos supostamente avança, números alarmantes de pessoas ainda passam fome (Risco de fome generalizada aumenta pelo quinto ano consecutivo - https://news.un.org/pt/story/2024/04/1830741).
“O mundo produz cerca de quatro bilhões de toneladas métricas de alimentos por ano, mas entre 1,2 e 2 bilhões de toneladas não são consumidos, disse o estudo do Instituto de Engenheiros Mecânicos, com sede em Londres.” - ( https://pet.agro.ufg.br/n/43489-ate-metade-dos-alimentos-do-mundo-vai-para-o-lixo-diz-estudo )
Incapazes de sanar as necessidades básicas da própria espécie, esquecemos (?) como elas se tornam nosso universo quando não temos meios para resolvê-las.
Como pensar em qualquer outra coisa quando: se precisa fazer xixi ou cocô, se está com fome, com muito sono e cansaço, com frio ou calor, com sede?
E mesmo assim as demandas e expectativas se mantém nas condições mais desfavoráveis. Se espera criatividade de quem tenta usar mais um copo de café para driblar o cansaço; se espera produtividade de quem precisa fazer mais um turno longo de trabalho sem pausas, para não colocar o emprego em risco; se responsabiliza cada um pela própria falta de “perseverança e força de vontade”, enquanto tentar não se preocupar demais com os primeiros sinais de adoecimento e incertezas com o futuro.
Tentar não destruir o planeta de propósito é importante, mas é necessário olhar para o problema considerando a escala das situações. O quanto uma única pessoa (média, normal, que não tem jatinho, foguete, submarino… meios de transporte e ricos hein…) consegue causar de destruição ou o quanto as mudanças que ela faça conseguiria salvar? Por outro lado, qual a qualidade da atenção e cuidado que conseguimos ter quando estamos vivendo em constante estado de alerta tentando resolver o básico?
Essa é uma brecha que tem sido explorada no dia a dia e também nas situações de emergência:
- Estão cortando mais árvores? Poxa, que pena, isso vai demorar e atrapalhar o trânsito, eu vou me atrasar para chegar.
- Fecharam a praça aqui perto? Legal, vão construir mais prédios, talvez o ajude a diminuir o preço do aluguel.
- Passava um córrego aqui? Não sabia. Mas sempre alaga mesmo e vem muito lixo que jogam na rua. A última chuva estragou tudo que tinha em casa.
- Expandiram mais uma faixa na estrada? Pode ser bom, se o transito melhorar eu posso tentar uma vaga melhor, mais longe, que tenha vale alimentação, o mercado anda caro.
- Realmente, não pode sair procurando culpados, é difícil prever a chuva. Cancela essas coisas que eu não gosto e não tem nada a ver e manda o dinheiro pra lá pra ajudar. (Mas não muito, muita doação pode prejudicar o comércio local.)
Nós sabemos dos padrões migratórios das aves, dos peixes que sobem a correnteza, das tartarugas que vão voltar pra mesma praia um dia e sabemos também uns dos outros. Em um tempo em que agir para diminuir as necessidades alheias não precisa significar falta em outros lugares, onde caímos na ordem natural das coisas ao não nos importarmos com sofrimentos evitáveis? De que tem servido a manutenção desses sofrimentos?
Quem vive nesse constante estado de alerta e incertezas dificilmente vai conseguir agir sobre o que quer que esteja sendo feito em detrimento da natureza. E ainda que consiga, como uma ação individual poderia resolver problemas de proporções tão extensas?
Chegamos no ponto para onde caminhamos: é necessário resolver o básico para poder se organizar. Ou se organizar para resolver o básico, nesse caso a ordem até pode ser relevante, mas o resultado ainda é positivo.
Não dá pra ser…
Criativo
Produtivo
Motivado
Comunicativo
Simpático
Proativo
Inovador
…quando se está em estado de alerta o tempo inteiro.
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